Ataque à democracia,<br>ao pluralismo<br>e à transparência
Por mais que a União Europeia se arvore em referência da democracia (conceito que elucidativamente os tratados assimilam ao de «economia de mercado»), não é possível esconder o carácter anti-democrático da integração capitalista europeia. Anti-democrático porque contrário ao interesse dos povos e porque desprezando a sua vontade e participação. Anti-democrático porque fundado em imposições supranacionais, desrespeitador das soberanias nacionais. Antidemocrático no que diz respeito ao funcionamento das suas próprias instituições, nas quais um directório de potências põe e dispõe, impondo a sua vontade e os seus interesses.
Em jeito introdutório, vem este parágrafo cimeiro a propósito das recentes alterações introduzidas ao Regimento do Parlamento Europeu. Celebrada como o expoente da democracia pan-europeia, esta instituição é hoje palco e expressão maior de um processo de acentuada erosão e subversão de instrumentos e possibilidades de intervenção democrática. Um ataque à democracia que acompanha e integra um ataque mais amplo, que em última instância visa as condições de vida dos trabalhadores e dos povos na Europa, uma das dimensões da profunda e arrastada crise em que a União Europeia se encontra mergulhada.
Há mais de dois anos que os dois maiores grupos políticos do Parlamento Europeu – PPE (direita) e S&D (social-democracia), – mancomunados com outras expressões da mesma coisa (liberais, conservadores, etc.) e com colaboracionistas diversos, andavam a cozinhar alterações de fundo às regras que regem o funcionamento do Parlamento Europeu. O objectivo: dotar a instituição de «maior eficácia».
O projecto viu finalmente a luz do dia e foi a votos na semana passada. A intenção era votá-lo simplesmente, sem discussão em plenário. Só por iniciativa dos deputados do PCP e por proposta do seu grupo, o GUE/NGL, foi possível criar as condições para que o debate se realizasse. E foi possível, assim, desmascarar os reais objectivos e consequências deste projecto, agora concretizado (aprovadas que foram as alterações, por larga maioria, mas ainda assim com cerca de 200 votos contra).
Vejamos, em síntese, alguns dos aspectos mais significativos das alterações introduzidas.
Foram alterados (nalguns casos criados) limiares mínimos para desencadear determinados processos – como o agendamento de debates ou a apresentação de propostas de alteração a determinados relatórios (legislativos e não legislativos). Passa a ser exigido um número tal de assinaturas de deputados que, na prática, o desencadear (ou inversamente o bloqueio) destes processos passa a estar mas mãos dos grandes grupos políticos.
Mas não é apenas a intervenção dos grupos políticos mais pequenos que é limitada, também a iniciativa individual dos deputados é fortemente cerceada. De tal forma que faz sentido falar-se de uma autêntica «lei da rolha». As declarações escritas – instrumento através do qual os deputados podiam projectar o debate de temas que considerassem relevantes – foram abolidas. O número de resoluções que um deputado pode subscrever passa a estar limitado. Idem relativamente às propostas de alteração que pode apresentar. Idem ainda relativamente às declarações de voto orais. O mesmo em relação às perguntas que pode apresentar a outras instituições – nomeadamente à Comissão Europeia e ao Conselho. Tal acarreta uma diminuição do poder de escrutínio sobre essas outras instituições, já que os limites impostos são muito restritivos. Este era, aliás, um dos instrumentos de intervenção mais importantes, pela possibilidade que abre de confrontar as instituições com realidades muito diversas, decorrentes de medidas e acções tomadas ao nível da UE e com impacto na vida nacional.
Em nome da «eficácia legislativa» são instituídos processos legislativos rápidos, ditos «fast-track», assim uma espécie de «atar e pôr ao fumeiro», uma vez enchido o «chouriço» legislativo. Limitando a intervenção dos deputados no processo e dificultando o seu escrutínio público.
Uma outra forma de limitar o escrutínio público da actuação dos eleitos foi criar mais dificuldades aos pedidos de votos nominais, ou seja, à existência de um registo escrito do sentido de voto individual dos deputados, com o qual os mesmos poderão depois ser confrontados.
Foi graças à existência destes «votos nominais» que todos podemos hoje saber, por exemplo, que os deputados portugueses do PS, PSD e CDS votaram a favor de todas as alterações aqui mencionadas, entre outras também graves. Será caso para dizer que sabem bem o que lá fazem. Sabem e querem escondê-lo…